Nos últimos meses, a sociedade tem estado abalada pelo destaque dado pela mídia aos crimes contra crianças. Num ambiente eticamente caótico, onde o aborto é aclamado como direito, multiplicam-se notícias de mães que jogam recém-nascidos no lago, no lixo etc. (matando-os fora do ventre). Crimes como os perpetrados contra o menino João Hélio e contra a menina Isabella Nardoni, acrescidos da monstruosidade do austríaco Josep Fritzl, que estuprou a própria filha por anos e com quem teve sete filhos, tem causado um mal-estar insuportável em grande parte da população. Infelizmente, a verdade é que nossa sociedade começa a colher os frutos de seu afastamento de Deus. A verdade é que a rejeição a Deus produz egoísmo, idolatria, imoralidade sexual e violência (Gn 6; Rm 1). As crianças, muito mais frágeis, são as principais vítimas dessa sociedade cruel e perversa: aborto, maus tratos e pedofilia fazem parte do cotidiano.
Em meio a tanta barbaridade, a morte e o sofrimento de crianças como essas levam muita gente a procurar entender a situação das crianças perante Deus. Afinal, o que acontece com uma criança depois da morte? As crianças são de fato inocentes, como sugere a crença popular? E até que idade esta inocência persiste? Afinal, não foi o próprio Jesus que disse que “delas é o Reino dos céus”? Como entender esta questão tão complexa?
Em primeiro lugar, é necessário destacar que as crianças são pecadoras desde o nascimento, conforme o Salmo 51.5. Ninguém nasce inocente. Todos nós somos pecadores por natureza. Portanto, a crença de que as crianças são “anjinhos” não tem fundamento nas Escrituras. Todavia, as crianças são evidentemente “inocentes” no sentido de que não fazem tanta maldade premeditada e trabalhada, como fazem os adultos. Em geral, as crianças são mais transparentes, sinceras e capazes de perdoar do que a vasta maioria dos adultos. Essa candura infantil parece estar refletida em alguns textos bíblicos:
“E disse: Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos céus” (Mt 18.3,4).
“E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles. Pegando-a nos braços, disse-lhes: Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo; e quem me recebe, não está apenas me recebendo, mas também àquele que me enviou” (Mc 9.36,37).
“Mas quando os chefes dos sacerdotes e os mestres da lei viram as coisas maravilhosas que Jesus fazia e as crianças gritando no templo: Hosana ao Filho de Davi, ficaram indignados, e lhe perguntaram: Não estás ouvindo o que estas crianças estão dizendo? Respondeu Jesus: Sim, vocês nunca leram: Dos lábios das crianças e dos recém-nascidos suscitaste louvor?” (Mt 21.15,16 – citação do Sl 8.2).
Esses textos refletem a idéia de que o próprio Jesus se identifica com as crianças e que, além disso, a criança é o padrão de espiritualidade desejado por Jesus. A criança possui humildade e sabe apresentar o louvor perfeito. Aqui há um contraste com a mentalidade religiosa dominante da época, quando o padrão de espiritualidade era o homem ancião.
Apesar disso, essa pureza infantil e essa sinceridade extraordinária dos pequenos não são suficientes para protegê-los espiritualmente. Em Marcos 9.21,22, lemos que um menino era possesso de um espírito mau desde a infância:
“Jesus perguntou ao pai do menino: Há quanto tempo ele está assim? Desde a infância, respondeu ele. Muitas vezes esse espírito o tem lançado no fogo e na água para matá-lo. Mas, se podes fazer alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos.”
As Escrituras fazem distinção entre crianças que estão debaixo de proteção divina por serem filhos de gente que está em aliança com Deus (1 Co 7.14). Portanto, parece razoável concluir que há crianças sob a influência do mal e crianças sob a bênção protetora de Deus. É muito provável que a idéia de “anjos da guarda”, mencionada em Mateus, refira-se a estas crianças, chamadas de santas em 1 Coríntios 7.14: “Cuidado para não desprezarem um só destes pequeninos! Pois eu lhes digo que os anjos deles nos céus estão sempre vendo a face de meu Pai celeste” (Mt 18.10).
Assim, vemos que as crianças podem ser abençoadas e especialmente protegidas por Deus, mas há também aquelas que estão afastadas de Deus e que não estão sob a mesma proteção espiritual. Se este é o caso, como então entender que Jesus afirmou que o Reino dos céus é das crianças? Como pode ser isso? A resposta para esta pergunta está na tradução equivocada do texto grego em Mateus 19.14. A verdade é que a tradução comum do texto em diversas versões antigas que afirma que “o Reino dos céus é das crianças” está errada. O grego toiouton não se refere às crianças e deve ser traduzido conforme, por exemplo, a NVI, e é compatível com Mateus 18.3,4:
“Então disse Jesus: Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas.”
Portanto, devemos concluir que as crianças não herdam o Reino dos céus automaticamente só por serem crianças. Isso significa que nem todas as crianças são salvas, ao contrário da crença popular. Se fosse verdade que todas as crianças são salvas, seria necessário impedir que elas se tornassem adultas. A consciência adquirida na fase adulta seria a maior maldição da vida. Será que poderíamos considerar Herodes, o assassino dos bebês, como um evangelista? Teria ele enchido o céu? É muito mais provável que haja crianças salvas e crianças perdidas. A verdade é que nenhum texto bíblico fala aberta e claramente sobre o assunto. Todavia, não é possível sustentar a salvação garantida a todas as crianças. É possível que as crianças, filhas de cristãos, sejam salvas, mas isso não pode ser provado. A outra possibilidade é que isso seja decidido a partir da decisão soberana de Deus. Isso não é impossível. Todavia, é preciso reiterar o fato de que a convicção de que todas as crianças são automaticamente salvas fundamenta-se numa tradução equivocada da Bíblia.
[Revista Enfoque-Edição 83 - JUN / 2008]
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ResponderExcluirQueridos,
ResponderExcluirObservem um argumento de Sayão, que ousarei criticar:
"'Então disse Jesus: Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas.'
Portanto, devemos concluir que as crianças não herdam o Reino dos céus automaticamente só por serem crianças. Isso significa que nem todas as crianças são salvas, ao contrário da crença popular. Se fosse verdade que todas as crianças são salvas, seria necessário impedir que elas se tornassem adultas. A consciência adquirida na fase adulta seria a maior maldição da vida. Será que poderíamos considerar Herodes, o assassino dos bebês, como um evangelista? Teria ele enchido o céu?"
O autor usa uma argumentação pesada, a qual, de tão acintosa, cria uma situação que extrapola o bom senso, vejamos: é possível suscitar dúvidas quanto à salvação de crianças, uma vez que o próprio texto bíblico não nos dá uma prova cabal acerca disso; porém, para corroborar sua tese, Sayão propõe que a consciência da fase adulta poderia ser a maior maldição da vida e seria necessário impedir a criança de se tornar uma pessoa adulta; além disso, nessa hipótese, Herodes poderia ser considerado um evangelista.
Ora, se a consciência da fase adulta se configurasse como a maior maldição da vida, desconsiderar-se-ia que essa maldição superior é o próprio pecado original que condena o homem. Ressalte-se ainda que a salvação pelo conhecimento de Cristo, associado ao arrependimento, depende, inexoravelmente, da consciência legada ao homem.
Outra lógica argumentativa do escritor se mostra ainda mais descabida: Herodes poderia ser considerado um evangelista, se todas as crianças fossem salvas.
Essa forma de convencimento utiliza-se de uma lógica: aquele que conduz pessoas ao céu anunciando as boas novas de Cristo é chamado de evangelista, logo, se Herodes conduziu inúmeros bebês à morte e ao céu - aceitando-se a hipótese da salvação de crianças -, este mesmo Herodes seria um evangelista (e dos bons!).
Esse pressuposto lógico, no entanto, é perverso, e não se mostra plausível em nenhum dos casos. Sayão força o argumento, tal como eu poderia forçá-lo para o outro lado, dizendo que: "Se o reino dos céus pertence aos que são semelhantes às crianças (como propõe a tradução bíblica da NVI), logo, conclui-se que este reino pertence também às crianças, posto que ninguém, mais do que elas, pode ser (redundantemente) semelhante a elas mesmas!"
Além do mais, outra forma forçada de argumentação pode desconstruir a inconsistente lógica do escritor, afinal, os evangelistas vieram após Jesus, anunciando o evangelho que Ele pregou, logo, Herodes jamais poderia ser considerado um evangelista, visto que a matança dos bebês ocorreu à época do nascimento do Messias, e o evangelho (e consequentemente o evangelista) depende da obra do Mestre, fato este posterior ao extermínio de crianças.
Como se vê, o argumento forçado existe para ambos os lados. Toda argumentação terá uma contra-argumentação à altura, e não se chegará jamais a um consenso.
Cabe a nós, portanto, tratar o assunto com máximo cuidado, sem escandalizar a fé dos irmãos que creem de forma diferente da nossa (como nos ensinou o apóstolo Paulo), até porque, por mais que argumentemos, não haverá solução para a dúvida. Seria como tentar descobrir, à luz da discussão popular, quem surgiu primeiro "o ovo ou a galinha?"
Diria um sábio português: "Jamais saberás!"
A quem teve paciência de ler,
Abraços fraternos!
André Godoy