terça-feira, 24 de setembro de 2013

O conceito científico e sua relação com a fé em Leon Tolstoi

Liev ou Leon Tolstoi (1828-1910), um dos grandes mestres da literatura russa do século XIX, crítico da Igreja Ortodoxa e do Estado, mas um homem de profunda fé cristã e amante das Escrituras bíblicas escreveu “O reino de Deus está em vós”, lançado e traduzido em nosso idioma também pela Editora Rosa dos Ventos em 1994. No quarto capítulo, ele aborda a questão do cristianismo mal compreendido pelos cientistas, deste, retirei alguns pensamentos que reproduzo aqui.

Para Tolstoi, um dos supostos conceitos acerca do cristianismo que impede a compreensão do sentido verdadeiro dele é o conceito científico.
Para ele, a religião não é, como acredita a ciência, um fenômeno que em tempo idos acompanhou o desenvolvimento da humanidade e que não mais se renovou, mas sim um fenômeno próprio da vida humana e ainda hoje absolutamente natural à humanidade como em qualquer outra época.
Ele disse que a essência da religião, portanto da fé, está na faculdade que têm os homens de profetizar e indicar o caminho que deve seguir a humanidade, numa direção diferente da seguida no passado e da qual resulta uma ação absolutamente diferente da humanidade.
Para esse mestre da literatura, existem apenas três conceitos da vida: a vida pessoal ou animal, centrada no próprio homem, a vida social ou pagã, centrada na família, na tribo, na raça ou no Estado, e a vida universal ou divina, que se centra no amor e na adoração do princípio de tudo: Deus.
Tolstoi disse que o entendimento dos doutores acerca dos princípios de Cristo é como um homem que, não tendo qualquer noção do que seja um círculo, afirmasse ser exagero dizer que todos os pontos da circunferência são igualmente distantes do centro.
Para Tolstoi, é impossível julgar uma doutrina sem haver penetrado no conceito do qual ela deriva. E, mais ainda, é impossível julgar uma tese de ordem superior colocando-se num ponto de vista inferior: julgar o alto da torre quando estamos nas fundações.
A posse de um método de investigação, supostamente infalível, constitui o principal obstáculo à compreensão da doutrina cristã por parte dos ateus e dos pretensos doutores, cuja opinião norteia a grande maioria dos incrédulos, crédulos e instruídos. E é dessa suposta interpretação que resultam todos os erros dos doutores sobre a doutrina cristã e, especialmente, dos estranhos mal entendidos, que mais do que tudo, impedem sua compreensão.
Tolstoi assevera que, crer naturalmente que a vida do homem seguirá a direção indicada por Cristo, é como acreditar que um barqueiro, para atravessar um rio veloz, remando quase que diretamente contra a corrente, navegaria naquela direção.
Para ele, baixar o nível de exigência dos mandamentos de Cristo para uma exigência que é possível seu cumprimento sem levar em conta toda a vida da pessoa é destruir o próprio ideal de perfeição. Uma perfeição possível perderia qualquer influência sobre a alma humana. Só o ideal de absoluta e infinita perfeição nos seduz e nos atrai. A doutrina de Cristo tem grande poder exatamente porque requer perfeição absoluta, ou seja, uma identificação total com a vontade de Deus. A vida segundo a doutrina cristã é o caminho para a perfeição divina. O cumprimento dessa doutrina está no movimento do eu em direção a Deus.
Tolstoi argumenta que a definição de amor a Deus e amor à humanidade não podem ser iguais. Para ele, a doutrina do amor à humanidade está baseada no conceito social da vida. Ele disse que o amor pode ser dado ou transferido palpavelmente em relação a si próprio, à família, à tribo, ao Estado e etc., mas o homem que ama a humanidade ama o quê? A humanidade como conceito concreto não existe e não pode existir.
O que é humanidade? Quais são os seus limites? Onde ela termina? Onde começa? São perguntas bem difíceis de responder exatamente e podemos incluir muitas outras questões nisso. Para Tolstoi, a humanidade é uma hipocrisia; não se pode amá-la. Esse amor não pode existir e não tem razão de ser.
A doutrina cristã reconduz o homem à consciência primitiva do seu eu, não de seu eu animal, mas de seu eu divino, da centelha divina, de seu eu filho de Deus, porque o amor cristão resulta unicamente do conceito cristão da vida, conceito segundo o qual o objetivo essencial da vida é amar e servir a Deus.
Ele finaliza dizendo que a opinião errônea dos doutores, que o sobrenatural é a essência do cristianismo, e que sua doutrina é impraticável, é também uma das causas pelas quais os homens de nosso tempo não compreendem o cristianismo. É, portanto, uma questão de mal entendidos, de raciocínios falsos e da perspectiva equivocada do conceito científico.

Carlos Carvalho

O reino de Deus está em vós. Leon Tolstoi. Ed. Rosa dos Ventos. 2ª. ed.: São Paulo – SP, 1994, capítulo IV. Versão digital.


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