Por Oscar Pilagallo
EXISTE UMA RELIGIOSIDADE possível para o homem contemporâneo moldado intelectualmente pelo racionalismo? Para Karl Marx (1818-83) e Sigmund Freud (1856-1939), a resposta é negativa. Ambos acreditam que a religião é apenas uma maneira de tornar tolerável o intolerável da condição humana. Segundo o autor do conceito de materialismo histórico, religião é uma forma de falsa consciência; de acordo com o pai da psicanálise, não passa de uma expressão da imaturidade do homem.
A resposta positiva, no entanto, não é exclusiva dos que acreditam no sobrenatural. Numa análise psicológica, o pensador alemão Georg Simmel (1858-1918) contesta a visão de mundo sintetizada por seus dois contemporâneos numa série de ensaios reunidos em dois volumes intitulados “Religião” [trad. Antonio Carlos Santos e Cláudia Dornbusch, Editora Olho d'Água, 108 págs., R$ 35; o segundo deve sair em fevereiro].
Para o filósofo, no passado, a religião cumpria o papel de dar um sentido de reconfortante unidade ao homem. Hoje, acredita, se a crença em Deus foi colocada em xeque pelo racionalismo, a necessidade humana de superar a fragmentação da realidade se mantém. “Essa aspiração é o legado da cristandade”, diz. “A necessidade de encontrar um ponto fixo em meio à instabilidade ao redor [...] nutre as ideias de transcendência.”
Simmel critica o ceticismo dos que reduzem Deus a uma construção humana. Pela perspectiva iluminista, ou existe “na realidade” uma esfera divina ou a fé em Deus é pura fantasia subjetiva.
O autor rejeita esse dualismo e propõe uma terceira posição: a dimensão metafísica da religião está contida na essência religiosa do próprio ser humano, abrindo espaço para a concepção humanista da espiritualidade sem Deus. “A religiosidade subjetiva não garante a existência de um mundo metafísico exterior, mas é ela mesma a realização direta desse mundo.”
Pouco conhecido no Brasil, apesar de citado por autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, Simmel nasceu em Berlim, num meio judeu-cristão que o marcou culturalmente, embora sua religiosidade, como ele a define, tenha sido “flutuante”. Na realidade, o autor é agnóstico, pois considera estar além da capacidade humana afirmar a existência ou a não existência de Deus. É a partir dessa perspectiva que procura entender a relevância da religião num mundo cada vez mais secular.
Georg Simmel pode ser alinhado aos formuladores da noção do misticismo ateu, ou ateísmo místico, como sugere no prefácio Frédéric Vandenberghe, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Tal ideia parte do princípio de que o misticismo não tem, necessariamente, origem religiosa, resultando também de outras motivações, como o êxtase da união pelo amor ou do contato com a arte, que conectam o ser humano a algo que o transcende.
Talvez nenhuma obra condense com mais intensidade tais esferas -a espiritual e a carnal- do que “O Êxtase de Santa Teresa”, do escultor italiano Gian Lorenzo Bernini (1598-1680). Representação mais conhecida da religiosa, o trabalho retrata Santa Teresa d’Ávila (1515-1582) em levitação, no momento em que recebe um anjo, cena que “se situa na instável fronteira entre o mistério sagrado e a indecência”, segundo Simon Schama em “O Poder da Arte” [trad. Hildegard Feist, Companhia das Letras, 504 págs., R$ 89].
Para o crítico, “a seu modo, eles formam um casal”. Schama contesta os especialistas que rejeitam a intenção erótica da obra com o argumento de que não passaria pela cabeça do escultor do papa conceber como convulsão orgástica o arrebatamento espiritual da freira. “O anacronismo moderno”, escreve, “não é a união de corpo e alma [...], e sim sua pudica separação em experiência sensual e experiência espiritual. Na época de Bernini, entendia-se e experimentava-se o êxtase como sensualmente indivisível”.
A interpretação do historiador tem respaldo no trecho da autobiografia em que Bernini se baseou. Primeira prosadora da língua espanhola, tendo antecedido o contemporâneo Miguel de Cervantes, que era seu leitor, Santa Teresa conta no “Livro da Vida” [trad. Marcelo Musa Cavallari, Penguin-Companhia, 418 págs., R$ 27,50], que via nas mãos do querubim “um dardo de ouro grande e no final da ponta me parecia haver um pouco de fogo. Ele parecia enfiá-lo algumas vezes em meu coração e chegava às entranhas. Ao tirá-lo me parecia que as levava consigo e me deixava abrasada em grande amor de Deus. Era tão grande a dor que me fazia dar aqueles gemidos [...]. Não é uma dor corporal, mas espiritual, ainda que não deixe o corpo de participar em alguma coisa e até bastante”.
Escritas a pedido de seus confessores -para usá-las como peça de defesa diante da Inquisição (que a absolveu), -as memórias da santa revelam um surpreendente e atribulado itinerário espiritual. Teresa foi uma menina rica, bonita e vaidosa. Entrou para o convento ainda adolescente por acreditar que a vida entre monjas seria mais livre do que a de esposa de um fidalgo espanhol, atitude que é objeto de uma autorreprovação que permeia todo o livro. O crescimento espiritual se deu aos poucos, em meio a vômitos, dores e espasmos que a debilitaram a ponto de ser dada como morta. Recuperada, teve a saúde precária até os 40 anos, com sintomas de desequilíbrio emocional que mais tarde a psicanálise associaria à histeria. É nessa idade, quando entra em contato com a obra de Santo Agostinho (354-430), que começa a ter visões divinas.
Autodidata, a santa “descrevia suas experiências sem se preocupar em dar-lhes fundamentação teológica”, como observa Frei Betto no prefácio. Sua religiosidade só ganharia contorno mais definido com a leitura da autobiografia de um dos principais formuladores do cristianismo. Em “Confissões” [trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Coleção Folha Livros que Mudaram o Mundo, 250 págs., R$ 15,90], Teresa aprendeu o lugar da alma. “Se a alma evita o mundo, vive, e se o busca, morre”, anotou o Bispo de Hipona.
No convento, Teresa desaprovava a vida mundana das religiosas, que, alheias ao ensinamento de Agostinho, mantinham laços com a sociedade. A santa, ao contrário, queria que sua alma vivesse e procurou, ao fundar a austera ordem das carmelitas descalças, o isolamento e a vida contemplativa.
Foi com esse espírito que Teresa revolucionou a espiritualidade cristã. “Arrancou Deus dos píncaros celestiais e o situou no cerne da alma”, afirma Frei Betto, para quem a freira, que enfrentou com determinação e vontade própria as autoridades eclesiásticas do seu tempo, pode ser considerada uma feminista “avant la lettre”.
O conteúdo da fé de Agostinho ou Teresa certamente não passa pelo crivo do Iluminismo, já que a fé não pode ser explicada racionalmente. Mas, quando se pergunta sobre a religiosidade possível do homem contemporâneo, a questão não é de conteúdo.
“Os místicos mais profundos apresentam uma notável indiferença ante o conteúdo da fé”, diz Georg Simmel. Para ele, a fé das pessoas intensamente religiosas é em si um fenômeno metafísico, “cujo significado e existência são completamente independentes dos conteúdos aos quais a fé se agarra”.
Tais pessoas, e esse seria o caso de Teresa e Agostinho, prescindiriam da religião como referência exterior, bastando-lhes a própria religiosidade de seu espírito. Para quem, então, a religião seria mais necessária? Para as pessoas pouco religiosas, afirma Simmel. “O fato de justamente os indivíduos não religiosos terem maior necessidade de religião”, argumenta o filósofo, “deixa de ser um paradoxo se pensarmos na situação análoga de que a alma plena e instintivamente moral não necessita de nenhum código moral separado, formulado como imperativo ético.”
Os crentes de verdade, na hipótese remota de perderem Deus, conservariam em si o valor metafísico que ele representa, acredita Simmel. “No entanto, a maioria das pessoas perde tudo ao perder Deus, pois a massa precisa de algo ‘objetivo’ num sentido completamente diferente daquele do indivíduo intenso e criativo.”
A questão, para voltar à pergunta que abre este texto, é saber se as pessoas conseguiriam se afastar da substância dos “fatos” transcendentes e se aproximar da “autoconsciência do significado metafísico de nossa existência”.
Há cem anos, quando publicou o ensaio “O Problema da Situação Religiosa”, Simmel colocou um “enorme ponto de interrogação” sobre essa possibilidade. Ele continua no mesmo lugar.
Para o filósofo, no passado, a religião cumpria o papel de dar um sentido de reconfortante unidade ao homem. Hoje, acredita, se a crença em Deus foi colocada em xeque pelo racionalismo, a necessidade humana de superar a fragmentação da realidade se mantém. “Essa aspiração é o legado da cristandade”, diz. “A necessidade de encontrar um ponto fixo em meio à instabilidade ao redor [...] nutre as ideias de transcendência.”
Simmel critica o ceticismo dos que reduzem Deus a uma construção humana. Pela perspectiva iluminista, ou existe “na realidade” uma esfera divina ou a fé em Deus é pura fantasia subjetiva.
O autor rejeita esse dualismo e propõe uma terceira posição: a dimensão metafísica da religião está contida na essência religiosa do próprio ser humano, abrindo espaço para a concepção humanista da espiritualidade sem Deus. “A religiosidade subjetiva não garante a existência de um mundo metafísico exterior, mas é ela mesma a realização direta desse mundo.”
Pouco conhecido no Brasil, apesar de citado por autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, Simmel nasceu em Berlim, num meio judeu-cristão que o marcou culturalmente, embora sua religiosidade, como ele a define, tenha sido “flutuante”. Na realidade, o autor é agnóstico, pois considera estar além da capacidade humana afirmar a existência ou a não existência de Deus. É a partir dessa perspectiva que procura entender a relevância da religião num mundo cada vez mais secular.
Georg Simmel pode ser alinhado aos formuladores da noção do misticismo ateu, ou ateísmo místico, como sugere no prefácio Frédéric Vandenberghe, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Tal ideia parte do princípio de que o misticismo não tem, necessariamente, origem religiosa, resultando também de outras motivações, como o êxtase da união pelo amor ou do contato com a arte, que conectam o ser humano a algo que o transcende.
Talvez nenhuma obra condense com mais intensidade tais esferas -a espiritual e a carnal- do que “O Êxtase de Santa Teresa”, do escultor italiano Gian Lorenzo Bernini (1598-1680). Representação mais conhecida da religiosa, o trabalho retrata Santa Teresa d’Ávila (1515-1582) em levitação, no momento em que recebe um anjo, cena que “se situa na instável fronteira entre o mistério sagrado e a indecência”, segundo Simon Schama em “O Poder da Arte” [trad. Hildegard Feist, Companhia das Letras, 504 págs., R$ 89].
Para o crítico, “a seu modo, eles formam um casal”. Schama contesta os especialistas que rejeitam a intenção erótica da obra com o argumento de que não passaria pela cabeça do escultor do papa conceber como convulsão orgástica o arrebatamento espiritual da freira. “O anacronismo moderno”, escreve, “não é a união de corpo e alma [...], e sim sua pudica separação em experiência sensual e experiência espiritual. Na época de Bernini, entendia-se e experimentava-se o êxtase como sensualmente indivisível”.
A interpretação do historiador tem respaldo no trecho da autobiografia em que Bernini se baseou. Primeira prosadora da língua espanhola, tendo antecedido o contemporâneo Miguel de Cervantes, que era seu leitor, Santa Teresa conta no “Livro da Vida” [trad. Marcelo Musa Cavallari, Penguin-Companhia, 418 págs., R$ 27,50], que via nas mãos do querubim “um dardo de ouro grande e no final da ponta me parecia haver um pouco de fogo. Ele parecia enfiá-lo algumas vezes em meu coração e chegava às entranhas. Ao tirá-lo me parecia que as levava consigo e me deixava abrasada em grande amor de Deus. Era tão grande a dor que me fazia dar aqueles gemidos [...]. Não é uma dor corporal, mas espiritual, ainda que não deixe o corpo de participar em alguma coisa e até bastante”.
Escritas a pedido de seus confessores -para usá-las como peça de defesa diante da Inquisição (que a absolveu), -as memórias da santa revelam um surpreendente e atribulado itinerário espiritual. Teresa foi uma menina rica, bonita e vaidosa. Entrou para o convento ainda adolescente por acreditar que a vida entre monjas seria mais livre do que a de esposa de um fidalgo espanhol, atitude que é objeto de uma autorreprovação que permeia todo o livro. O crescimento espiritual se deu aos poucos, em meio a vômitos, dores e espasmos que a debilitaram a ponto de ser dada como morta. Recuperada, teve a saúde precária até os 40 anos, com sintomas de desequilíbrio emocional que mais tarde a psicanálise associaria à histeria. É nessa idade, quando entra em contato com a obra de Santo Agostinho (354-430), que começa a ter visões divinas.
Autodidata, a santa “descrevia suas experiências sem se preocupar em dar-lhes fundamentação teológica”, como observa Frei Betto no prefácio. Sua religiosidade só ganharia contorno mais definido com a leitura da autobiografia de um dos principais formuladores do cristianismo. Em “Confissões” [trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Coleção Folha Livros que Mudaram o Mundo, 250 págs., R$ 15,90], Teresa aprendeu o lugar da alma. “Se a alma evita o mundo, vive, e se o busca, morre”, anotou o Bispo de Hipona.
No convento, Teresa desaprovava a vida mundana das religiosas, que, alheias ao ensinamento de Agostinho, mantinham laços com a sociedade. A santa, ao contrário, queria que sua alma vivesse e procurou, ao fundar a austera ordem das carmelitas descalças, o isolamento e a vida contemplativa.
Foi com esse espírito que Teresa revolucionou a espiritualidade cristã. “Arrancou Deus dos píncaros celestiais e o situou no cerne da alma”, afirma Frei Betto, para quem a freira, que enfrentou com determinação e vontade própria as autoridades eclesiásticas do seu tempo, pode ser considerada uma feminista “avant la lettre”.
O conteúdo da fé de Agostinho ou Teresa certamente não passa pelo crivo do Iluminismo, já que a fé não pode ser explicada racionalmente. Mas, quando se pergunta sobre a religiosidade possível do homem contemporâneo, a questão não é de conteúdo.
“Os místicos mais profundos apresentam uma notável indiferença ante o conteúdo da fé”, diz Georg Simmel. Para ele, a fé das pessoas intensamente religiosas é em si um fenômeno metafísico, “cujo significado e existência são completamente independentes dos conteúdos aos quais a fé se agarra”.
Tais pessoas, e esse seria o caso de Teresa e Agostinho, prescindiriam da religião como referência exterior, bastando-lhes a própria religiosidade de seu espírito. Para quem, então, a religião seria mais necessária? Para as pessoas pouco religiosas, afirma Simmel. “O fato de justamente os indivíduos não religiosos terem maior necessidade de religião”, argumenta o filósofo, “deixa de ser um paradoxo se pensarmos na situação análoga de que a alma plena e instintivamente moral não necessita de nenhum código moral separado, formulado como imperativo ético.”
Os crentes de verdade, na hipótese remota de perderem Deus, conservariam em si o valor metafísico que ele representa, acredita Simmel. “No entanto, a maioria das pessoas perde tudo ao perder Deus, pois a massa precisa de algo ‘objetivo’ num sentido completamente diferente daquele do indivíduo intenso e criativo.”
A questão, para voltar à pergunta que abre este texto, é saber se as pessoas conseguiriam se afastar da substância dos “fatos” transcendentes e se aproximar da “autoconsciência do significado metafísico de nossa existência”.
Há cem anos, quando publicou o ensaio “O Problema da Situação Religiosa”, Simmel colocou um “enorme ponto de interrogação” sobre essa possibilidade. Ele continua no mesmo lugar.
[Folha de S.Paulo, edição de domingo, 30 de janeiro de 2011, Ilustríssima]
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